Canela
Canela em pó
A canela é, possivelmente, a especiaria mais conhecida desde a antiguidade e também a mais popular nos nossos tempos. A sua versatilidade permite juntá-la com quase tudo! Conhecida desde sempre, é citada na Bíblia quando Deus ensina Moisés a colocar a canela nos leitos nupciais para perfumar. Sabe-se que também na antiguidade a canela era um dos artigos que fariam parte de oferendas a monarcas daquele tempo. Era, portanto, um produto de elite como foi para nós até ao século XVI. A canela terá chegado ao Médio Oriente trazida pelos comerciantes e navegadores fenícios. Mas também entra na mitologia. Na obra “As mil e uma noites” Sheherazade relata uma lenda sobre a origem da canela, sendo que ela terá crescido no solo de um lago secreto!
Quanto à origem do nome, há várias correntes. Uns afirmam que virá do indonésio kayu manis, que significa madeira doce. Em hebreu chama-se quinnamon e em grego, kinnamon. De facto, o nome genérico é em latim cinnamomun e idêntica forma de se chamar também em inglês.
Paus de canela
Consta que os mouros que viviam nos espaços que são hoje Portugal e Espanha já comercializavam a canela como um produto raro, e se apresentavam em feiras. Gil Vicente (1465-1536) apenas a cita uma vez e no Auto da Índia. Já Roberto de Nola no seu livro “Libre del Coch” (1525?) inclui a citação de canela cento e vinte e cinco vezes. Sabe-se pouco deste chefe de cozinha que trabalhou para D. Fernando I de Aragão (1423-1494) sendo conhecidas várias edições do livro no século XVI, sendo uma em catalão e outras em castelhano. Quando Vasco da Gama chegou a Ceilão o cheiro da canela, estontearam e agradaram aos portugueses, segundo Garcia da Horta. Sara Golbaz & Hellmut Wagner, no livro “Les épices et leur secrets” (2016) escreveram que a canela é possivelmente uma das mais antigas especiarias do mundo. Na Ásia era já muito apreciada 3000 aC. Mas foi Vasco da Gama que a trouxe para a Europa em 1502. Por issso não é de estranhar que a canela seja fundamental nos pães de especiarias, na preparação do caril indiano, no garam masala, e até no próximo ras-el-hanout de Marrocos. Fábio Pestana Ramos (2004) refere que Vasco da Gama já trazia canela quando chegou a Lisboa em 18 de Setembro de 1499…!
Galinha mourisca medieval
São vários os autores que, não sabendo exatamente a origem da canela, escreveram como Heródoto (485-420 a. C.) este texto extraordinário: para colher canela era preciso vestir um traje de corpo inteiro feito com couro de boi, cobrindo tudo exceto os olhos. Somente assim a pessoa estaria protegida das criaturas aladas semelhantes a morcegos que gritam horrivelmente e são muito ferozes…. É preciso impedir que elas ataquem os olhos dos homens enquanto eles cortam a canela…. Ignora-se por completo em que país ela cresce. Dizem os árabes que os paus secos que chamamos de canela são trazidos à Arábia por grandes aves, que os carregam para seus ninhos feitos de barro localizados sobre precipícios que nenhum homem é capaz de galgar” Também Heródoto escreveu que para a mumificação dos defuntos, os egípcios, usavam mirra, canela e outros aromas. Talvez por isso, haja a expressão popular no Egito: aqui até os mortos cheiram bem! Teofrasto (370-286 aC) escreveu o que considerou uma fábula para explicar o aparecimento da canela. Esta crescia em vales estreitos e profundos onde haveria imensas serpentes de mordedura fatal. Para a apanhar protegiam as mãos e os pés antes de descer…
Tortas de S. Martinho ou de Penafiel
Segundo José -Marie Pelt, em “Especiarias & Ervas Aromáticas” (2003), a tradição da canela é muito antiga e considerada um produto de prestígio. A importância das especiarias era tão importante que na Babilónia, Nabucodonosor, apreciava os pratos e vinhos com especiarias. Refere ainda que quando Alexandre, o Grande, entra na Pérsia, descobre no palácio de Dario II não menos de duzentos e setenta e sete cozinheiros e numerosos escravos exclusivamente dedicados às especiarias. As árabes também utilizavam as especiarias e em particular a canela, o cravo da índia e a noz-moscada. O vinho acanelado era de consumo corrente e, nós, ainda hoje colocamos paus de canela nas sangrias. Até à Idade Média a canela era um produto caro e de muito prestígio, que decaiu com a chegada dos portugueses a Ceilão, atual Sri Lanka, e gradualmente o seu preço vai baixando.
É importante referir desde já o aparecimento de um produto semelhante à canela, cássia, que é produzida na China e na antiga Birmânia, atual Mianmar, e que se apresenta em fragmentos mais densos e mais rugosos. Analisados em paralelo, a canela do Ceilão, como é mais conhecida e que cresce de forma espontânea, tem um perfume e um sabor mais delicado do que a popular canela da China. No mercado também se reconhecem pelo preço, sendo a do Ceilão mais cara.
As definições de canela em enciclopédias ou dicionários é muito simples: casca de árvore chamada caneleira, de aroma e sabor agradáveis, usada (em pó ou fragmentada) em terapêutica, perfumaria, doçaria e como condimento (Dicionário Porto Editora). Há, no entanto, no Dicionário dos Símbolos, de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (1994) uma definição mais alargada escrevendo que: Esta casca de laureácea… é um fortificante tradicional da farmacopeia chinesa. Por isso é utilizada nos métodos taoistas que visam a purificação dos corpos… a canela é o alimento habitual dos imortais… a caneleira é, por simples homofonia, símbolo de nobreza e honrarias.
À canela são atribuídas características que ajudam em várias terapias. Geralmente considerada como uma substância aromática, estimulante e antisséptica. Parece atuar com sucesso no aparelho digestivo, e particularmente contra gases, a flatulência e contra o vómito. No século XVII e com receituário de William Westmacott (1694), parece que aliviava a fortes dores de parto. Também parece atuar e atenuar os sintomas de constipações, gripe, resfriados e inflamação de garganta. A Associação de Medicamentos dos Estados Unidos, sugere a utilização diária da canela para reduzir o açúcar no sangue e melhora a taxa de colesterol! Boa para diabéticos.
A utilização na nossa cozinha está a cair em desuso, mas mantendo-se em alta na doçaria. A partir do século XVI era hábito, em mesas ricas, polvilhar as carnes com canela. Desse tempo resta-nos ainda a galinha mourisca. Lembro-me de nos anos 80, próximo de Ponta Delgada (Açores) me servirem uma excelente carne bovina assada que no final foi polvilhada com canela. Temos ainda o famoso pato com canela cuja designação é Fricassé de pato com canela, receita de casas abastadas em Trás-os-Montes. Com canela também se polvilham, no final, as Tortas de S. Martinho ou de Penafiel.
Marmelos assados com canela
Interminável é a utilização da canela na nossa doçaria popular ou regional ena doçaria rica ou conventual. A canela é presença obrigatória no arroz-doce e na aletria. Como é poderosa na confeção da Bola doce mirandesa, e entra nos económicos, em muitos Ss., no Bolo de canela, no Bolo centeio, no Bolo de mel da Madeira, nas Donas Amélias…, na Palha de Abrantes, no Pudim Abade de Priscos… como é presença obrigatória na mesa de doces natalícios ou na calda dos Sonhos, dos Bolinhos de Arroz, das Rabanadas… ou ainda para cozer ou assar mação ou marmelos. Não dispenso canela em pó para consumir pasteis de nata.
Deixei para o final uma sugestão: muitas vezes com o café servem-nos um pau de canela (para substituir a colher?). Tenho pena da utilização abusiva pois a forma como utilizam o pau de canela praticamente não transmite qualquer sabor ao café. Para isso, devem partir o pau no sentido longitudinal e assim criar arestas vivas que irão, agora sim, transmitir gosto ao café. Vejo inutilizar tantos paus de canela sem benefício que me apetece apelar ao bom senso e não destruir tanto. E, se gosta mesmo de canela, polvilhe com ela o seu chá ou o seu café.
Pau de canela aberto
Café com pau de canela aberto
© Virgílio Nogueiro Gomes
*Fotos de canela em pó, paus de canela e café, cortesia do Hotel Oásis Imperial em Fortaleza
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