Já tive várias vezes vontade de escrever sobre este bolo tão especial reservado ao território mirandês e que, mesmo na região transmontana, não era muito divulgado. Felizmente os tempos mudaram e agora é possível encontra-lo mesmo em Lisboa. As suas origens estão pouco estudadas e as referências escritas são parcas. Possivelmente a primeira receita publicada é de 1908 por Jorge Manuel Martins Pereira no seu livro “As Terras de Entre Sabor e Douro”. Depois é necessário chegar a 1982 para ver a receita publicada por Maria de Lourdes Modesto no livro “Cozinha Tradicional Portuguesa”. Curiosamente Maria Odete Cortes Valente publica também a receita no volume “Trás-os-Montes”, 1985, não constando ainda na primeira edição de 1973.
Genericamente podemos dizer que a Bola Doce Mirandesa é um bolo feito a partir de uma massa de pão enriquecida. Mas não chega! A massa é inicialmente enriquecida com ovos, manteiga e azeite (que lhe garante maior durabilidade) e depois colocado açúcar e canela que lhe dá o sabor doce e elitista. Esta bola inclui-se na lista de doçaria popular e regional. Não me parece que se deva confundir com doçaria conventual pois a sua receita não se assemelha à traça ou matriz da doçaria conventual pois esta tem sempre, na confeção, maior quantidade de açúcar do que farinha. Na Bola Doce de Miranda a farinha tem um peso dominante e o açúcar é quase só um acabamento. Claro que nos conventos também se faria uma doçaria mais simples ou popular. No entanto não deverá ser apelidada de conventual, ou ambiente religioso, só porque era confecionada em espaços de conventos. É considerada conventual, a rica, na qual o açúcar e gemas de ovos são dominantes. A doçaria conventual é feminina devido à legislação que D. Manuel I, 1496, emitiu proibindo os homens de mexer em açúcar, especialmente devido ao seu alto preço. Por isso a doçaria nos vem dos conventos femininos.
Garantir a origem da bola é, pois, uma tarefa difícil. Todos sabemos das dificuldades, por ausência documental, das tradições alimentares até ao início da época moderna. É, porém, credível que para a nossa bola se possa fixar no tempo com o aparecimento ou divulgação da canela. E parece que a farinha de trigo usada era a de serôdio, mais fina, e que hoje é difícil encontrar.
A Câmara Municipal de Miranda do Douro publicou em abril deste ano um opúsculo “Bola Doce Mirandesa” da autoria do Dr. António Rodrigues Mourinho com o subtítulo “Subsídio para o seu Estudo e Origem” que vem ajudar a entender a fixação deste bolo e que publica a primeira receita conhecida.
Para compreender melhor a fixação de tradições alimentares regionais, é muito importante conhecer a história das feiras e mercados. Sabemos que D. Dinis mandou fazer feiras duas vezes por ano em Miranda do Douro, uma em outubro e outra um mês depois da Páscoa. Mais tarde D. João I, 1404, concedeu a Miranda a possibilidade de fazer uma feira franca por mês, nos três primeiros dias. Consta que em algumas feiras em Portugal, mouros que ficaram a residir connosco, venderiam açúcar e alguns produtos alimentares raros como as especiarias. No entanto, é no Foral de D. Manuel I, 1510, que se faz a primeira referência a canela. Segundo Roby Amorim, 1987, em “Da Mão à Boca” escreveu que no tempo medieval: A massa de pão servia igualmente para fazer doces. Os nossos antepassados medievais deliciavam-se com a boleima, não mais do que um bolo de massa de farinha, com açúcar e canela. Hoje em dias boleima está associada a doce alentejano.
Foto extraída do opúsculo da C M Miranda do Douro
Contam-se muitas estórias à volta da nossa bola. A principal tem a ver com o facto de ser, habitualmente, confecionada com sete camadas. Como com sete camadas seria também confecionada a bebinca, Goa, camadas, neste caso a saudade das sete colinas de Lisboa! Mas sete é o número de sorte em muitos países do Oriente...
Importante é que se divulgue este doce. Antigamente se fazia apenas na Páscoa e também no Natal, e seria um doce sempre presente durante o período festivo por se conservar com facilidade. Quando posso como durante todo o ano!
Recentemente foi-me servida com 1 gelado de baunilha. De Verão parece-me que ficaria melhor um sorvete de amoras
Desta vez dou a receita que ganhei por aproximação familiar. Aqui vai a receita tal como chegou até mim, oriunda da família de Dona Amélia das Dores Cangueiro Ferreira, que a recebeu das suas antepassadas, de Sendim:
Bola Doce de Miranda
Ingredientes:
4 ovos
125 gr de manteiga derretida
1 dl de azeite
1, 250 Kg de farinha
½ l de água
30 gr de fermento de padeiro
Recheio:
700 gr de açúcar (amarelo e muito pouco branco)
Canela
(1 tabuleiro retangular de ir ao forno)
- Põe-se a farinha na amassadeira e faz-se um buraco no meio
- Deita-se a água um pouco quente com o fermento desfeito e uma pitada de sal
- Vai-se amassando e juntando a manteiga derretida com o azeite e os ovos desfeitos e um pouco amornecidos
- Bate-se depois muito bem como se fosse massa de pão, deixando-a um pouco mole e põe-se a levedar
- Quando atingir o dobro do tamanho está lêveda
- Unta-se o tabuleiro muito bem com manteiga
- Divide-se a massa em sete porções
- Estica-se cada porção do tamanho do tabuleiro, sendo que a 1ª camada deve ficar mais grossa e não romper para o açúcar não cair e com as bordas para cima do tabuleiro
- As camadas são esticadas à mão e não com o rolo (para ficarem mais leves e fofas no final)
- A seguir à 1ªcamada de massa espalhar o açúcar com a canela e isto até à última camada que é a 7ª
- A última camada só leva açúcar, e não canela para não queimar
- Viram-se as bordas da massa para dentro do tabuleiro unindo-a à última
- No final pica-se com um palito e vai ao formo (200º) durante cerca de uma hora.
Foto extraída do opúsculo da C M Miranda do Douro
Bom Apetite!
© Virgílio Nogueiro Gomes