Fogaças e Festa da Atalaia
Final da missa de domingo, no exterior, dia 27 de agosto de 2017
Atalaia é uma antiga freguesia do concelho do Montijo, frente a Lisboa e na margem esquerda do rio Tejo. Foi D. Manuel I que em 1515 atribuiu foral ao Montijo (anteriormente chamava-se Aldeia Galega), sendo criado o seu concelho. A Atalaia juntou-se recentemente, 2013, ao Alto Estanqueiro – Jardia e criaram a União de Freguesias de Atalaia e Alto Estanqueiro – Jardia. A notoriedade de Atalaia deve-se, especialmente, à celebração religiosa do Círio de Nossa Senhora da Atalaia, que se realiza no último fim-de-semana de agosto. A festa desenvolveu-se desde o início do século XVI e hoje transformou-se numa grande romaria com festejos profanos associados.
Segundo a Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, Verbo, Círio é Fenómeno especialmente estremenho, os Círios eram romarias especiais a santuários, marianos de preferência. No Dicionário de Língua Contemporânea da Academia de Ciências de Lisboa, Verbo, encontramos a definição de Círio: 1 – Vela grande de cera, usada em igrejas, procissões, funerais... e 2 – Procissão ou festa religiosa com romaria que se dirige de um lugar a outro, levando uma ou mais dessas velas. Ainda, no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa podemos ler: 1 – grande vela de cera e 2 – procissão em que se leva, de uma localidade para outra, uma dessas velas.
Cruzeiro
Pelas referências atrás citadas, círio pode ser de facto uma vela de cera de grandes dimensões, mas, também, uma festividade religiosa ou procissão, que implica deslocação a determinado local, habitualmente uma igreja, santuário, ou outro edifício religioso de culto mariano. Estas manifestações, hoje estudadas também do ponto de vista sociológico e ou antropológico, mantém-se desde há séculos guardando o seu essencial, e passaram fronteiras particularmente para o Brasil onde encontramos, por exemplo, o Círio da Nossa Senhora da Nazaré em Belém do Pará.
O Círio de Nossa Senhora da Atalaia, terá tido início em 1507, pela Confraria dos Oficiais da Alfândega de Lisboa, que se organizaram para pedidos à Senhora para defesa da peste que alastrava na capital e que matava até cinquenta pessoas por dia. Teve apoio real de D. Manuel I. O culto e devoção a N. Sra. da Atalaia é anterior àquela data, mas foi este círio que lhe deu grande divulgação. Sabe-se que em 1306 a “cabeça da Atalaia” aparece com registo de propriedade das suas terras e edificações onde se inclui a igreja. Curiosamente Maria Ângela Beirante, no livro “Territórios do Sagrado”, Colibri 2011, considera a importância desta igreja: Nossa Senhora da Atalaia tinha uma quintalada de especiaria de esmola na Casa da Índia, que consistia no rendimento periódico que os administradores da ermida deviam requerer aos feitores da Casa da Índia. Tal facto constitui uma prova inequívoca da protecção régia ao santuário da Atalaia e do reconhecimento público da sua nomeada. Recordo que a Casa da Índia foi criada em 1503 com os objetivos de gerir e administrar os territórios das Descobertas, e sob o controle da Coroa Portuguesa.
Andor de Nossa Senhora da Atalaia, para a procissão
O seu âmbito foi de grande dimensão e popular a todas as classes que levou José Ramos Tinhorão, a escrever no seu livro Festa de Negro em Devoção de Branco, Unesp 2012, o seguinte: No caso da romaria ao santuário de Nossa Senhora da Atalaia... esse espírito de concessão do rei e da Igreja à vocação festeira do povo miúdo no campo das manifestações religiosas estava destinado a manifestar-se, de forma mais ostensiva, na participação de negros escravos e forros na festa, em pé de igualdade com a sociedade branca local. Por este comentário podemos imaginar, naquele tempo, ser este círio, como outros, um movimento de integração social muito avançado para a época.
Sobre esta manifestação, também J. B. F. Carrère, no livro Panorama de Lisboa no Ano de 1796, escreveu sobre a festa da Atalaia:Esta é interessante por apresentar o singular espectáculo de grupos de negros, negras, mulatos e mulatas, fantasiados das maneiras mais extravagantes, a preceder a procissão cantando e dançando. Isto revela o sentido popular que a festa contém.
Na igreja, dois Círios visitantes
Visitei pela primeira vez a festa do Círio de N. Sra da Atalaia em finais dos anos setenta do século passado. Tenho acompanhado esta festa com alguma regularidade e sentindo qua cada vez mais o crescimento do arraial profano, apesar de se manterem as manifestações religiosas. Este ano estive presente na missa de domingo celebrada a hora de almoço. Nesta hora as atividades da feira, comércio e diversão, estavam sem grande animação. Em conversas locais disseram-me que começariam mais tarde pois estava muito calor! De facto, a atividade registava-se na igreja com a imagem sobre um andoe e mais duas imagens de círios que já tinham chegado. Outros círios iriam chegar para integrar a procissão do final da tarde. Muito movimento também na aquisição de velas ou objetos em cera com moldes de partes do corpo e que servem para pedir intervenção ou agradecimento de promessas. Devo confirmar um grande grupo de pessoas que com ar constrito e confiante na fé faziam os rituais de pedidos ou agradecimentos. Fui à sala da quermesse da igreja onde adquiri vários “papelotes” bem enroladinhos que me renderam igual número de prémios. Ainda muito interessante o museu de “registos” e “ex-votos” que nos levam a entender melhor os caminhos da fé e a dimensão desta romaria.
Fogaça
Voltando ao conceito de círio, no livro “Tradições Religiosas Entre o Tejo e o Sado, de Luís Marques, Assírio & Alvim 2005, encontramos o maior conjunto de informações sobre os Círios do Santuário da Atalaia. E começa por escrever que O Círio é uma confraria popular que ciclicamente se desloca a um santuário em cumprimento de uma «promessa antiga» que a aldeia ou povoação teria feito em tempos idos... transportam geralmente consigo a imagem religiosa que veneram, bem como o guião e as bandeiras. O Círio possui ainda outros traços identificadores, como o ritual das três voltas ao templo (ou ao cruzeiro como acontece na Atalaia); as arrematações (de bandeiras e de fogaças); as procissões; os anjos...; a lavagem simbólica na «fonte santa», ... os ex-votos; as medalhas; os «registos»; os festins alimentares; os gaiteiros; a dança, etc.
Fogaça
Ora chegámos a um detalhe que, especialmente, originou esta crónica: as fogaças e os festins alimentares. A fogaças que tanto me entusiasmas é uma tradição que também é comum noutras festividades religiosas. Por exemplo vejam o que já escrevi sobre as Fogaças de Palmela, clicando aqui. As fogaças são bolos de características populares e não são feitas de massas ricas ou muito elaboradas. No caso da Atalaia quem consumisse a fogaça ficaria inume à peste, à escassez de recursos e ao flagelo das pragas! Entra na sua confeção um produto valioso que era a canela. Antigamente as fogaças eram leiloadas à porta da igreja, que levantou algumas conflitualidades e por isso a situação foi alterada para não confundir a festa religiosas. Ainda me lembro desse leilão à porta da igreja, sendo que o produto financeiro seria para garantir a organização dos festejos e garantir os seguintes. Este ano apenas assisti à venda das fogaças agora chamadas de Alcochete. Disseram que as fogaças atuais, e que se vendem durante todo o ano em Alcochete, seriam uma tradição criada pelo Círio dos Marítimos de Alcochete também com rituais próprios. Parece que cada fogaça deveria ter um quilo e deveriam ser em sete unidade, sete número mágico e com importância em várias religiões.
Mais fogaças
As receitas são simples e não inventem, não são de origem conventual mais sim pela espontaneidade popular: farinha de trigo, açúcar amarelo, manteiga, canela em pó, raspa de casca de limão, leite e ovo para pincelar. Quando forem a Alcochete comprem fogaças, e façam delas um petisco, uma lambarice, recheiem com geleia de marmelo, ou uma fatia de marmelada. E brindem à Saúde!
© Virgílio Nogueiro Gomes
Vista interior da igreja com Nossa Senhora da Atalaia no altar mor
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