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Ilha do Sal – Terra pobre / Terra rica

 

Seis casais amigos decidiram fazer a passagem do ano em Cabo Verde e escolheram a ilha do Sal para o efeito desejado. 

Cabo VerdePara este cronista de meia-tigela foi uma oportunidade de dilatar o seu já robusto currículo geográfico com mais um país nunca antes visitado. Claro que o Sal é apenas uma das dez ilhas do arquipélago cabo-verdiano e uma das mais pequenas, visto que o país abrange uma área territorial de 4.033 km2 e o Sal tem apenas 216 Km2. Contudo, a importância de uma região ou de um país só residualmente se pode medir em quilómetros quadrados de território. Há que juntar também a zona marítima exclusiva que em Cabo Verde é deveras avantajada, a idiossincrasia do povo, os recursos económicos e as amenidades ecológicas. Ora o Sal começou por ser uma ilha inóspita, árida, seca e pobre. Tendo sido descoberta em 1460, só após alguns séculos passou a ter residentes, maioritariamente paupérrimos escravos provenientes de outras ilhas. Hoje tem cerca de 20 mil habitantes e recebe anualmente para cima de 150 mil visitantes. Como se deu o milagre? Já vamos ver!

Hotel Oásis Salinas

Ficámos principescamente hospedados de 26/12/2018 a 02/01/2019 (7 noites) num moderno hotel de cinco estrelas em regime de tudo (mas mesmo tudo) incluído. Coube-nos uma “suite” bem equipada e com varanda. As refeições eram em sistema de “buffet ”amplo, variado e por vezes temático com menus alusivos e belas decorações (noites da Itália, do Brasil, de Cabo Verde …) Recebemos também três convites para jantares “finesse” especiais em restaurantes agregados ao hotel que deliciaram os “gourmets” do grupo. Julgo ter-me apercebido que havia para cima de seiscentos quartos e que a lotação estava esgotada com gente de vários países europeus. Anotámos de forma não exaustiva, para além de portugueses, gente da Alemanha, Rússia, Bélgica, Holanda, Eslováquia, Polónia, França, Itália, Espanha, Inglaterra, Luxemburgo, Suécia, etc. Havia, em permanência, bares abertos de livre consumo onde serviam sanduiches, pizzas, bolos, cafés, chás e bebidas espirituosas. Com surpresa, registámos no bar de praia “Morna Beach Club” o Gin Kelly produzido em Alcochete pela empresa Bebilusa. À noite, a animação musical seduzia os hóspedes. Exímios dançarinos e dançarinas de coxas rechonchudas em ritmos frenéticos, algo eróticos, propiciavam prazeres, entusiasmos e contagiavam a assistência. Salienta-se a noite do “réveillon” com repasto de lagostas, camarões, sapateiras, mexilhões, percebes e outros frutos do mar e da terra, champanhe, vinhos finos e demais iguarias. Ainda antes da meia-noite houve fogo-de-artifício. Não faltaram as tradicionais doze passas de uva, as beijocas da praxe e muita música para dançar e folgar.

A cidade de Santa Maria

Santa maria beach salO hotel situa-se muito perto desta povoação que em 1835 só tinha uma escassa dezena de habitantes e é hoje um centro cosmopolita onde residem permanentemente cidadãos oriundos de quatro dezenas de países. Acolhe, para além dos turistas europeus que acabam por aqui fixar residência, emigrantes provenientes do continente africano (Senegal, Gâmbia, Guiné-Bissau …) que se dedicam principalmente ao comércio. Um passeio pelas ruas principais deleita, de sobremaneira, o mulherio, cujos olhos não se desprendem dos garridos tecidos multicolores e das bugigangas artesanais onde invariavelmente é ostentada a palavra de ordem “no stress”. Abundam os restaurantes com bom peixe e marisco e a celebrada cachupa. Alguns supermercados e o mercado municipal, inaugurado há poucos anos, satisfazem plenamente exigentes compradores. À noite, buliçosos bares pejados de dançarinos profissionais ou de ocasião, alegram o ambiente festivo da urbe. Com satisfação verifica-se que progridem em bom ritmo os trabalhos de saneamento, calcetamento e eletrificação dos arruamentos. Outros encontram-se ainda em terra batida onde a areia misturada com o sal proporcionam piso rijo e não impede a circulação dos veículos. Destes, ficaram-nos na retina os bonitos táxis de amarelo e azul claro sempre disponíveis para quem os pretende utilizar.

Porto Antigo e “Odjo d’Água”

Sem desprimor para os luxuosos hotéis que existem junto à praia de Santa Maria gostaríamos de enaltecer a boa apresentação do empreendimento “Odjo d’Água”, provido de primorosos apartamentos e aprazíveis espaços ajardinados. Em vão quisemos observar os interiores dos apartamentos. Tal não foi possível porque todos se encontravam ocupados. Curiosamente havia bastante vegetação que, nesta ilha, como é óbvio, só sobrevive com especiais cuidados. Tomámos nota de algumas espécies botânicas, a saber:

Tamareira cabo-verdiana, a qual faz parte do grupo de palmeiras endémicas com destaque para o Marmulano;

Palmeira imperial, Roystonea oleracea, família Arecaceae;

Palmeira real, Archontophoenix cunninghamiana, família das Arecaceae;

Palmeira areca, Dypsis lutescens, família das Arecaceae;

Dracaena marginata, família das Asparagacea;

Dragoeiro, Dracaena draco, família das Ruscaceae;

Cróton, Codiaeum variegatum, família das Euphorbiaceae;

Baobá, embondeiro ou calabaceira, Adansonia;

Borracheira, Ficus elastica, família das Moraceae;

Barril-dourado, Echinocactus grusonii, família das Cactaceae;

Trepadeira-cardeal, Ipomoea horsfalliae.

Devo parar a enumeração para não enfastiar os leitores menos latinistas e pouco devotos da botânica. Acrescento somente que também gostei de ver coqueiros com os respetivos frutos e papaeiras em flor e algumas já com pequenas papaias.

Na Escola Kim Barbosa

Mais de metade do peso da nossa bagagem era constituída por material escolar, brinquedos e roupas para oferecer. Entregámos vários sacos deste material na escola Kim Barbosa que foi a primeira que encontrámos em Santa Maria. A professora e as crianças ficaram emocionadas e agradeceram.

A Cooperativa Desenvolvimento de Cabo Verde (CODE)

Efetuámos algumas compras num supermercado (café da ilha do Fogo, chá de moringa …) e entrámos a seguir no bem organizado Mercado Municipal que se encontrava aberto, embora já estivéssemos da parte da tarde. Ao acaso, numa pequena sala do primeiro andar estava o professor Amílcar Bernardo com quem conversámos demoradamente. Ele nasceu em Canha e morava em Salvaterra de Magos. A filha, Hélia Bernardo, apaixonou-se pela ilha e para lá arrastou os pais que acabaram por fixar residência em Santa Maria. De forma entusiástica descreveu-nos o seu projeto educacional e de promoção da reutilização e reciclagem de desperdícios. Tem sido apoiado por organizações internacionais que lhe fazem chegar livros e materiais escolares que administra criteriosamente e distribui pelas crianças e jovens mais necessitados. Aprendeu, por experiência própria, a dar valor aos bens abandonados que ainda podem ter utilidade e aproveitar as energias disponíveis do sol e do vento. Abordou o problema do custo de obtenção de água potável que é quase toda obtida por centrais de dessalinização, visto que raramente chove. Descreveu-nos em pormenor como decorre a vida das pessoas nesta ilha que foi muito pobre mas que agora atrai uma imensidão de turistas. Por via disso, os preços dos terrenos para construção de habitações e serviços cresceram exponencialmente. Gostámos muito da conversa havida que reflete uma filosofia que há muito também perfilhamos.

O Museu do Sal

Para se apreender melhor como tem sido a evolução da ilha é indispensável visitar o Museu do Sal. O museu é pequeno o que permite analisar tudo em pormenor. Houve duas personagens principais que desencadearam o desenvolvimento do Sal: Manuel António Martins, natural de Braga, que se tornou abastado comerciante na ilha da Boa Vista e que em 1796 iniciou a exploração do sal e Georges Vynckier, belga, que foi o pioneiro do turismo e das energias renováveis, tendo construído em 1967 a pousada Morabeza. O museu apresenta-nos os três fautores principais da economia salense:

- A exploração do sal, iniciada em 1796 em Pedra de Lume (cratera de um vulcão extinto), cuja exportação chegou a 2 mil moios por ano, principalmente para o Brasil (um moio equivale a 2.400 litros). Foi necessário abrir um túnel de acesso em 1808, uma linha férrea em 1837 e um teleférico de 1100 metros de comprimento em 1919. Em 1984 cessou a exportação.

- A implantação de um aeroporto internacional em 1937 por iniciativa de italianos que depois progrediu com a aviação da África do Sul.

- O turismo é atualmente a principal alavanca de desenvolvimento económico da ilha e de todo o país e que se iniciou em 1967. Hoje integra muitas dezenas de luxuosos hotéis de quatro e cinco estrelas. As principais atrações têm a ver com a amenidade climática, a natureza, as praias de água turquesa e os desportos náuticos: surf, windsurf, kitesurf, padding, jet ski, mergulho, vela, pesca.

O Museu mostra-nos vários objetos e utensílios curiosos como, por exemplo: as manilhas de latão que eram as pulseiras usadas pelos escravos e o barril volante com cintas de borracha e o seu acessório para arrastar 100 litros de água para fornecer aos habitantes. Põe ainda a tónica na miscigenação cultural entre europeus e africanos que é uma característica marcante de Cabo Verde.

Aproveitámos para adquirir o romance “A Matriarca – Uma Estória de Mestiçagem” da escritora Vera Duarte que nos encantou e lemos num ápice.

Agradecemos vivamente à técnica do Museu Drª Georgiana Oliveira que nos elucidou primorosamente sobre muitos detalhes do espaço museológico à sua guarda.

O pontão

É um dos locais mais emblemáticos e está sempre cheio de gente para ver chegar pescadores. O atum é o peixe que aparece com mais frequência. Imediatamente é esfolado, escalado e posto à venda. Os companheiros Tó Mané e Zé aventuraram-se numa pescaria. Levantaram-se às 4 horas da manhã e, a acreditar nas fotos que mostraram nos smartphones, tiveram sucesso, mas os peixinhos propriamente ditos, não os vimos; foram doados ao dono da embarcação.

A “Kite Beach”

No dia 29 de dezembro, soalheiro como todos os outros, o grupo alugou uma viatura com o respetivo motorista e fez uma digressão pelo norte da ilha.

Relativamente perto de Santa Maria e após circularmos por vários terrenos salgadiços parámos na Cabeça da Salina local mais conhecido por “Kite Beach”. Se não exagero, esvoaçavam no ar centenas de papagaios acrobáticos de variegadas cores, designados por “kites”. Funciona aí uma escola para a aprendizagem deste desporto e pelo que vimos, a participação era bastante grande.

Jardim Botânico “Viveiro”

A segunda paragem ocorreu no Viveiro. Trata-se de um espaço de 2 hectares que inicialmente se destinava unicamente a fornecer plantas ornamentais para os “resorts”. Atualmente integra uma parte botânica e outra zoológica, essencialmente lúdica. Não se pode dizer que o jardim esteja deslumbrante e compreende-se o motivo: a gestão da água. Ficámos um pouco desiludidos porque esperávamos encontrar mais plantas endógenas. Pareceu-nos que as espécies foram plantadas com insuficiente base científica. A parte mais organizada foi a do canteiro das cactáceas, denominado o Jardim dos Cactos. Contudo, fui anotando algumas espécies que me despertaram a atenção e que descrevo sucintamente: acácias americana e africana, uma razoável quantidade de palmeiras que protegem o jardim das ventanias, coqueiro, calabaceira, gengibre concha, nem, bela-emília, goiabeira, araçazeiro, rosa-do-deserto, flor-do-paraíso, ficus benjamina, chapéu-de-napoleão, yuca-elefante, flor-de-coral, etc. (os nomes científicos poderei transmitir aos interessados que os solicitarem). Após muita insistência consegui que a proprietária (uma senhora italiana) me desse um exemplar da única publicação que existe sobre o Jardim Botânico. É um livrinho com boas fotografias e sucintas explicações sobre 56 plantas. Foi elaborado em 2018 pelos alunos do Colégio Letrinhas e patrocinado pela Câmara Municipal do Sal, mas a tiragem foi somente de 25 exemplares. Que pena!

Espargos

É a cidade capital da ilha e fica relativamente perto do aeroporto Amílcar Cabral. Aprazámos o almoço no restaurante “Dez Pedrinhas” e quando regressámos, já passava das 14 horas, o restaurante ainda estava cheio de comensais. Fomos para a cachupa, enquanto outros companheiros escolheram lagosta e arroz de marisco, acompanhados de vinho tinto da ilha do Fogo. A povoação tem mais habitantes mas é sensivelmente mais modesta do que Santa Maria. A toponímia “Espargos” tem a ver com a planta que nasce espontaneamente na região. No livro “Sal – A ilha do surf, das ondas e dos banhos de sol” que para além das descrições contém excelentes imagens, aparece uma fotografia que supostamente seria de um espargo (Asparagus officinalis) só que é uma planta bem diferente, pois parece ser uma Orobanche arenaria. Naturalmente o nome popular da referida planta é aqui conhecido como espargo. Para evitar confusões, opino que nas identificações botânicas deveremos sempre dar a primazia aos nomes científicos.

Buracona

Seguimos na direção da vila de Palmeira que, segundo se julga, foi onde surgiu o primeiro aglomerado populacional da ilha constituído por pescadores. É o principal porto do Sal e onde foi implantada a maior central de dessalinização (há outra particular num empreendimento hoteleiro). Percorremos mais alguns quilómetros por caminhos não asfaltados cheios de calhaus e covas, vendo algumas cabras e vacas a pretenderem tirar sustento nalguns tufos amarelados que brotavam nos terrenos ermos e pedregosos e chegámos finalmente à Buracona. O sítio é na verdade sensacional! Inclui uma pequena lagoa encravada nos rochedos vulcânicos onde se pode tomar banho; uma fenda que, a meio do dia e com o sol em posição, se pode ver um “olho azul”, reflexo da claridade no fundo das grutas aquáticas; o jardim das ilhas que desenha no solo negro da lava vulcânica com pedaços de búzios brancos partidos, a configuração das dez ilhas do arquipélago; um coreto museológico com amostras das variadas rochas que se podem encontrar no Sal. A escassez do tempo não deu para observar melhor esta última parte e mesmo assim, o cronista teve que aguentar alguns justos reparos pelo seu atraso no regresso à viatura.

Pedra-de-Lume

Na cratera de um vulcão extinto a uma profundidade maior do que a cota marítima surge uma paisagem salina em círculo de cerca de um quilómetro de raio. Tendo sido outrora a principal fonte de rendimento da ilha com a exportação do cloreto de sódio é hoje um atrativo sítio turístico. Os visitantes podem boiar, como acontece no Mar Morto, devido à concentração salina, caminhar nos talhos ou receber tratamentos através de massagens especiais com aplicação dos produtos da salicultura. Perto avistámos a Capela de Nossa Senhora da Piedade que se diz ser o mais antigo santuário edificado no Sal. Estava, no momento, a decorrer um funeral e não pudemos visitá-la.

O sapateiro da Guiné-Bissau

Descolou-se a sola dos sapatos da Manela, romperam-se-me os chinelos e descoseu-se a alça da minha sacola. Um simpático sapateiro de rua, que todos os dias vinha de Espargos onde reside, para Santa Maria, prontificou-se a efetuar rapidamente as reparações. Pediu pelo seu trabalho apenas 2 euros. Demos-lhe 5 e mais umas roupitas para os seus três filhos e ficámos com mais um amigo.

Casa Viva da Cultura – Funaná - Raboladia

Mesmo ao lado da Morna Beach Club, restaurante de praia pertencente ao hotel, encontra-se outro bar-restaurante que ostenta o nome de Museu Vivo. Entrámos e vimos um bem cuidado espaço com várias peças artesanais, antigos utensílios, réplicas das casas do barlavento e do sotavento cabo-verdianos e estátuas, entre as quais, a do Ti Carlos (homem-atleta de braços de ferro e espírito de sacrifício que transportava, de uma só vez, 200 litros de água potável para fornecer às casas salenses, impulsionando dois barris de 100 litros, um à frente e outro à retaguarda), a da “Tia Alcinda”, símbolo da mulher do Sal, a do carpinteiro Adérito Évora e uma réplica do pelourinho do século XV erigido na cidade velha. Muito interessante!

Conclusão

Esta breve crónica, que ora se apresenta relativamente a uma semana disfrutada na ilha do Sal, não é, de forma alguma, exaustiva e contém obviamente lapsos e porventura algumas incorreções. O principal intuito é apenas o de perenizar memórias. Reflete, como não poderia deixar de ser, observações meramente pessoais realçando os aspetos que mais tocaram o gosto e a sensibilidade do cronista. Poderá, eventualmente ter alguma utilidade para futuros visitantes desta ilha que é simultaneamente pobre e rica por via da sua extrema secura, mas também do seu clima tropical, das suas praias de areia dourada e água azul-esmeralda e da afabilidade e simpatia do seu povo.

Enalteço, por fim, o excelente ambiente proporcionado pelos companheiros desta digressão que constituíram uma verdadeira família em que a amizade e a entreajuda foi sempre a pedra de toque do nosso são relacionamento.

Janeiro/2019

Miguel Boieiro

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